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  • Foto do escritorSilvio Ambrosini

"O efeito cascata"

Atualizado: 2 de set. de 2020

ou "Consequências da migração do eixo pendular".

Ah, Joãozinho... Sempre metido em histórias incríveis, não? Noutro dia eu estava chegando perto de uma galera no pouso que formava uma roda. Não era roda de fumo não, era roda de conversa mesmo e sabe quem estava no centro, gesticulando e narrando a sua última aventura? Ele mesmo! Nosso amigo Joãozinho.


Cá entre nós, fico particularmente impressionado com a capacidade de sobrevivência do Joãozinho, este pobre voador de fim de semana, já teria sucumbido à maioria dos eventos dos quais Joãozinho passa sempre raspando ileso.


Mas voltando à roda, eu o reconheci mais pela voz do que pela cara, pois desta vez ele estava branco, bem mais branco, parecia um nabo, mas dava para ver sua euforia falando e gesticulando enquanto a galera olhava incrédula para aquela narrativa. Contava que seu parapente tinha adquirido vida, como Lázaro mesmo, que levanta do mundo dos mortos, pois enquanto enrolava uma térmica, a vela decidira do nada, dar um salto na sua frente, que aconteceu tão rápido que quando ele deu por si, já estava numa interminável e apavorante sequência de pêndulos que prosseguiu numa aparente e apavorante eternidade, até que milagrosamente, como que pelo toque do Espírito Santo, a vela decidiu voltar a voar e seguiu suave boiando no céu como se nada tivesse acontecido. Só seu coração que continuava repicando meio enlouquecido. Após vários suspiros, ele só teve de aproximar e pousar.


Joãozinho narrava exasperado, mas sem esconder uma ponta de orgulho, talvez por ser dono da história de terror daquela tarde. Fui me aproximando da roda só para ver se tinha alguma coisa nova para aprender. Eis então, que surge correndo, um outro amigo nosso com o celular na mão: "Eu filmei tudo!" gritava ele, "eu peguei tudo! Se liga!".

A conversa parou na hora e todos os olhares se voltaram para a telinha de cristal líquido que mostrava meio tremido o incrível Joãozinho enrolando uma termal entre outros pilotos. Tudo parecia tranquilo, até que... O que vi a seguir, vou procurar descrever para vocês da forma mais detalhada possível. Parecia-me que Joãozinho estava com dificuldade de manter a vela sobre a cabeça, aparentemente ele encaixou no núcleo da termal sem corrigir os batoques, já que a vela recuou nitidamente. Para dizer a verdade, a impressão foi a de que ao entrar na térmica ele apertou os freios um pouco mais. Isso não incomum, alguns pilotos se assustam ao entrar em uma térmica e involuntariamente tendem a calçar os freios. É claro que o efeito disso é o pior possível, pois justamente a entrada na termal pede que os freios sejam liberados, para que o velame consiga alcançar o piloto que normalmente irá pendular para frente.


No caso de Joãozinho, o pêndulo foi inegavelmente forte, a vela recuou atrás da cabeça de Joãozinho uns 10 ou 20 graus. Dava para ver seu bracinho acionando os freios exatamente neste momento. Joãozinho aproximou-se bastante do estol, e acredito que tenha iniciado uma pequena parachutagem, já que repentinamente, seu velame fez um novo recuo, isso é típico quando acontece a entrada em estol e a vela para um pouco de voar.

Até aí, as coisas poderiam ter sido suaves, se ele tivesse sido capaz de notar o estol, pena que isso não aconteceu. Deveria ser assim, já que quando o estol se torna realidade, os batoques tocam o alarme mostrando uma repentina redução de pressão. Essa é uma hora em que o piloto mais experiente, não solta os freios repentinamente, mas sim só um pouquinho enquanto procura segurar suavemente até que o velame esteja novamente acima da sua cabeça.


Claro que não foi isso que Joãozinho fez. Sem saber como agir, ao invés de controlar os freios, Joãozinho se assustou e com seus bracinhos, apertou os batoques ainda mais e a vela retribuiu recando ainda mais também.


Então Joãozinho resolve soltar os batoques e a vela avança violentamente.

O que segue é uma cascata pendular, parece que cada pêndulo ajuda o próximo a ficar ainda mais violento. No último pêndulo, finalmente, a vela sofre um colapso espetacular, Joãozinho é projetado para o céu e milagrosamente passa perto das linhas enquanto o conjunto retoma sua forma e com um barulhão, a vela se abre com Joãozinho lá novamente pendurado debaixo dela como se nada tivesse acontecido.

Que bom que se Joãozinho voa com um parapente A, se estivesse voando um parapente mais bravo, é bem provável que estes pêndulos tivessem evoluído com mais violência, produzindo um resultado mais desastroso.


O eixo pendular


Mas o que importa de tudo isto é uma peculiaridade deste tipo de pêndulo que eu gostaria

de ressaltar aqui: percebam que normalmente, num pêndulo frontal, temos um eixo que corre no sentido do alongamento do parapente e que se situa em algum lugar muito próximo da vela, migrando delicadamente nalgum ponto entre a região do intradorso e do extradorso; este é o eixo X. Podemos dizer que o piloto se situa na região mais afastada deste eixo e a distância entre piloto e eixo do pêndulo pode ser chamada de raio, como numa roda de bicicleta. Veja a figura 1.




Inércia


O piloto, naturalmente descreve uma velocidade radial ao redor deste eixo (daí o nome, pois o corpo do piloto percorre o “raio”. Esse movimento também é conhecido com movimento circular). Isto acontece porque existe uma diferença de inércia muito importante entre parapente e piloto. Se você não se lembra o que é inércia, o tio te ajuda a lembrar: A inércia pode ser entendida como a tendência que um corpo possui em permanecer no estado em que se encontra, ou seja, quando um corpo está se deslocando, é a inércia que ajuda a “empurrar”. Naturalmente o atrito ou outra força como a atração gravitacional irá terminar mudando isso. Por outro lado, se o corpo está em repouso, a inércia o mantém assim até que outra força atue. No espaço sideral, onde não existe atrito, um corpo que for empurrado em uma determinada direção, permanecerá para sempre dentro daquele movimento até que outra força atue para modificar isto.

Então é fácil concluir que para mudar o status de um movimento, é preciso que uma outra força atue no corpo, lutando contra a inércia. O valor da inércia é proporcional à massa de um corpo, tanto é que quanto maior a massa, maior será a energia necessária para mudar o movimento. A partir daí fica mais fácil entendermos por que às vezes é tão difícil permanecermos exatamente debaixo do velame, estamos pendurados em uma asa que tem um determinado valor de inércia, enquanto nosso corpo possui um valor muito mais alto. Então, o velame acelera e desacelera mais violentamente que o piloto, pois tem menos inércia.


A migração do eixo pendular



Então, ao entrar numa térmica ou quando o piloto aciona os batoques, o velame recua, e temos um pêndulo. Este movimento é enxergado pelo piloto como um “recuo” da vela. Na verdade, não foi a vela que recuou, mas sim desacelerou, ao passo que o piloto manteve a velocidade anterior e daí, o pêndulo.


Quando finalmente o velame inicia seu movimento para frente, ele tende a ultrapassar o piloto, já que por inércia, este acelera e desacelera mais lentamente. A vela então “salta” para a frente do piloto. Enquanto isso acontece, outra peculiaridade também acontece e eu a chamo de migração do eixo pendular. Veja a figura 2 e perceba que o eixo X deixou sua posição anterior próximo ao alongamento do velame, migrando para um ponto bem mais perto do piloto. É aqui, que agora então, está o novo eixo do movimento, enquanto o velame percorre o perímetro ao redor do eixo.


Velocidade radial


Sabemos também que a velocidade radial está diretamente relacionada ao tamanho do raio, isto é, num movimento circular (como a evolução do piloto ao redor do eixo), a variação da distância entre piloto e eixo está diretamente relacionada a importantes alterações de velocidade radial. Imagine um corpo que se desloca ao redor de um eixo percorrendo em uma determinada fração de tempo, digamos, 3 metros por segundo. A distância do corpo até o eixo é o raio, então vamos imaginar que este raio tem 8 metros.


Estamos então, diante de um movimento circular. Vamos então repentinamente reduzir o raio. O que irá acontecer em seguida será um aumento proporcional de velocidade radial. Se em nosso exemplo, reduzirmos o raio pela metade, isto é, de 8 para 4 metros, a velocidade radial resultante será o dobro, ou seja, 6 metros por segundo. Veja a figura 2a.


Podemos simular facilmente este fenômeno fazendo uma experiência simples com uma pedrinha amarrada ao final de um pedaço de barbante. Faça a pedrinha girar e então coloque o dedo ou um lápis na altura da metade do raio. No mesmo instante, a pedrinha irá descrever várias voltas a mais em uma velocidade muito mais alta, aliás, as voltas a mais serão justamente a resultante desse repentino ganho de velocidade.


Este fenômeno da física é importantíssimo e ele é a base de várias manobras aparentemente irrealizáveis ou difíceis de compreender no parapente, entre elas a manobra SAT e todas as suas derivadas especialmente aquelas onde o piloto passa por cima da vela.


Então, o que é interessante constatar aqui é que: diferente do que acontece num processo pendular corriqueiro onde o eixo está na vela ou no piloto, existe um determinado momento em que o eixo pendular se torna capaz de migrar para algum ponto entre a vela e o piloto, causando um aumento repentino e vertiginoso na velocidade radial.


A força centrífuga


Uma segunda questão que precisa ser abordada diz respeito a força centrífuga. Esta é a força que nos empurra para fora do movimento circular e ela é proporcional à velocidade. Quanto mais rápido giramos, maior é a força. É importante lembrar que com o aumento da centrífuga, os comandos que Joãozinho aplica no parapente precisam ser igualmente mais fortes, pois com o aumento da aceleração centrífuga, o velame enrijece exigindo mais energia para atender a deformação que uma ação nos freios lhe pede. Em casos extremos, onde um giro em mergulho está acontecendo, é preciso frear com tanta força que muita gente nem acredita que seja possível. Lamentavelmente, essa é uma causa de acidentes, porque Joãozinho tenta tirar o parapente do giro acionando os freios, mas não produz resultados e ele termina desistindo.


E a migração do eixo do parapente?


A experiência da pedrinha é fácil, mas como conseguir a migração do eixo pendular em um parapente?


Joãozinho também gostaria de saber, afinal isso tudo é uma novidade para ele e quando a tal migração acontece involuntariamente, Joãozinho a descreve como o momento em que seu parapente adquiriu vida. É claro, Joãozinho está acostumado com uma determinada velocidade radial, ou seja, o tempo que o pêndulo gasta para acontecer, mas agora, tudo está acontecendo praticamente duas vezes mais rápido.


De fato, enquanto em um pêndulo normal, a vela parece mover-se numa velocidade menor que o piloto, nesta nova configuração, vela e piloto movem-se ao redor de um eixo imaginário que habita o centro do conjunto numa velocidade duas vezes maior.

Se nos determos a observar o que acontece durante a famosa manobra SAT, iremos perceber que enquanto a vela se move para frente, o piloto gira para trás, caracterizando uma migração de eixo de rotação. Desta maneira, o aparentemente impossível se torna possível e um piloto torna-se capaz de através de um tumbling ou um SAT assimétrico (não vamos entrar em detalhes aqui sobre as diferenças específicas entre estas duas manobras) passar duas, três ou mais vezes por cima do velame. De onde veio toda aquela energia? Exatamente da migração do eixo pendular que ao reduzir o raio pela metade, tem a velocidade radial duplicada!! É esta mesma migração, a responsável pela "possessão" do velame durante o efeito cascata.


Vamos lá, observe as figuras novamente, repare que elas são sequenciais e as diferentes posições angulares estão numeradas de 1 até 10.


A figura 1 nos mostra um atraso clássico do velame que pode ser causado pelo uso de freios ou entrada em uma ascendente.


Se isto acontece de forma suave, passamos para a figura 2 onde assistimos o avanço da vela de forma suave com o eixo no piloto. Há um momento de ligeira "parada", que é apenas o ponto onde a velocidade radial é mais baixa, logo depois vem nova aceleração.


Mas numa situação extrema, o “pilouco” resolveu estolar a vela inadvertidamente para então soltá-la, o que segue está demonstrado na figura 2a’ que mostra uma migração do eixo e consequente aumento vertiginoso de velocidade.



É isso que acontece durante o efeito cascata assim como na situação de estol que acabo de mencionar.


A figura 4 mostra a saída de ambos os movimentos.


Bem, se o velame está "possuído pelo demônio", e o piloto não é a Linda Blair, está mais que na hora de exorcizá-lo.


Vamos então voltar para a causa inicial da meleca toda: o estol involuntário. Se quisermos ser felizes, é essencial que levemos em conta que nem é preciso acionar os freios até embaixo da selete para provocar um estol, basta encontrar uma posição pendular favorável (ou desfavorável, como queira), com vela recuada atrás da cabeça e dar um pequeno toque. É assim que se provoca uma parachutagem, por exemplo, ou também a entrada no helicóptero.


Quem já viu um piloto acro provocar um helicóptero entende agora como que o sujeito parece que sai girando do nada; ele provoca um pequeno pêndulo e aperta um pouco os freios no momento exato em que a vela está mais atrás provocando uma entrada em parachutagem, para em seguida, configurar o helicóptero (não vou me deter a detalhes desta manobra também).


Solucionando o problema


A questão então é que Joãozinho não se deu conta desta inclinação e caprichou no freio estolando a vela inadvertidamente. Agora ele está diante de um grave problema que precisa ser solucionado o quanto antes.


Existem alguns cenários aqui que é preciso levarmos em conta. No primeiro, Joãozinho está alto, tem uma boa margem para inclusive abrir o paraquedas de emergência caso sinta que não é possível fazer seu parapente voltar a voo reto. Além disso, Joãozinho conseguiu perceber uma repentina queda de pressão nos batoques, imediatamente acompanhada de um recuo brusco do velame. Este é o melhor dos cenários, Joãozinho não irá soltar os freios nesta hora, apenas irá liberar um pouco, até perceber que o velame retorna para cima de sua cabeça, talvez nesse instante, ele tenha de voltar a dar uma pequena pressão, para evitar um avanço e finalmente soltar os freios. A vela irá saltar à sua frente, ele sentirá um bom frio na barriga, mas dificilmente passará disso.


No segundo cenário, Joãozinho não percebe o estol, assusta-se com o recuo e solta os freios. O avanço resultante será violento, possivelmente alcançando 90º à frente do piloto e inclusive podendo colapsar. Joãozinho atuará com energia nos freios neutralizando o voo enquanto segura os batoques até que o velame esteja novamente sobre a cabeça do piloto. Uma olhada para cima será suficiente para conferir se o velame se parece com um, quero dizer, que não há uma deformação tão grande que descaracterize a asa complemente. Isso deverá ser suficiente para que ele então libere os freios para observar o avanço resultante até a retomada do voo reto.


Se ele não conseguir realizar a intervenção necessária, o velame seguirá seu caminho e usará a força da gravidade como gerador de energia extra para novos movimentos ainda mais violentos. Perceba que a gravidade da situação pode ser crescente ou simplesmente pode ser que tudo se neutralize por puro acaso. De qualquer forma, ao observar o velame sobre a cabeça, é preciso liberar os freios completamente, caso contrário ele permanecerá estolado. Esse é um erro comum, o piloto não libera os freios, fica insistindo em seu desesperado desejo de obter uma forma perfeita no velame. Isso não irá acontecer porque este velame não está voando. Ele está estolado, não existe voo aqui, então é preciso aceitar uma configuração aproximada para liberar os freios.


É nessa hora que eu me lembro da importância de um curso SIV. Existe um treinamento específico sobre estudo de estol, parachutagem e full estol. Na atividade, o piloto aprende a induzir o parapente a diferentes situações de estol, aprende o comportamento do parapente, toma conhecimento de sua forma, observa cuidadosamente como ele se move de maneira estranha, entra em contato com um universo de sensações a serem experimentadas, interpretadas e estudadas, e tudo isso sob a orientação de um instrutor, em um ambiente previsível, com a segurança da represa logo abaixo. Nada mais conveniente. As vezes escuto as pessoas falando que “aquele colapso valeu por um SIV”... que engano! Um SIV vai muito, muito além de um colapso.


E falando em SIV, eu tenho a impressão que só quem fez um treinamento prévio em um, tem condições técnicas de fazer um full estol para retirar o parapente de uma situação de cascata, pois um erro, poderá conduzir o piloto a uma situação bem mais grave com até um possível mergulho dentro do velame, ou gravata seguida de autorrotação.


Então, na falta de experiência prévia, não fazer nada pode ser uma solução bastante factível com boas probabilidades de uma solução para o problema. Por outro lado, as tentativas de seguir fórmulas in-falíveis como "posição mágica", "mão-na-orelha" e outras. Isto só tende a complicar ainda mais as coisas, pois o parapente precisa de velocidade para retomar voo.


Tenho insistido muito para o Joãozinho fazer um SIV, mas ele é muito resistente ao mesmo tempo em que está muito sujeito aos conselhos da galera que embora possam até ser bem intencionados, na maioria das vezes podem também carecer de base técnica. Essas coisas são difíceis, espero que agora depois deste susto ele acorde para uma realidade tão dura quanto o chão abaixo de nós.


Sivuca


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